sábado, 17 de novembro de 2007

Era uma vez um rapaz

Hoje voltei até aqui entre dualidades, confusão e transtornos e parece mesmo que já nem te conheço. Agradeço a quem não devo, culpo quem é inocente. Faço tudo ao contrário. Brinco com o meu "eu" e desafio o meu "mim". E mais uma vez não consigo escolher, e olho para trás infinitas vezes. E quero, e desejo, e sinto falta, sinto muita falta, e mais do que tudo tenho necessidade, muita necessidade de segredar em gritos o que sou, o que fui e o que faço e exibir os meus troféus. Perco todas as discrições e a timidez (que tu tanto aprecias ) e revelo-me meio-rapaz/meio-homem usando as minhas estratégias, as minhas velhas estratégias.
Deixo saltar a culpa, desdobro-me em agradecimentos que se perdem nos passos e despejo quase meio do meu passado. Como gostava que me entendesses... e como gostava de vestir a tua pele nem que fosse só por um dia, para nos compreedermos, para chegarmos a um entendimento, para que pudesse dar-te o meu relógio. Como gostava de te dar da minha energia para quebrarmos este gelo, mas essa eu também não sei por onde anda.
Vivemos dias diferentes em meses diferentes e eu só quero que me digas o que pensas, que me digas que as minhas vitórias também são as tuas, que festejes comigo esta alegria, enfim... que abras o teu casulo, nem que seja para me contares histórias...e eu escrever, quando me calar.

'Era uma vez um rapaz que era dois. Um deles nunca tinha lembranças do outro, e o que é mais, um nunca tinha influência na vida do outro; cada um era o que era por separado e assim, com uma assombrosa pontualidade, a pontualidade com que os astros marcam o solstício, dava-se a estranha metamorfose. Na primavera, e mais ainda no verão, poderia garantir-se que este rapaz era o sol; mas no Outono, e mais ainda no Inverno, este rapaz era indubitavelmente a lua: a sua pele ficava pálida e os seus cabelos transformavam-se em arame, com calas brancas e outras grisalhas. E o rapaz andava sempre muito triste no Inverno, ao contrário do que sucedia no verão: a sua pele era morena, e o seu cabelo liso, e o próprio riso fazia-o despertar de manhã bem cedo.

A sua mãe preocupava-se muito com o fenómeno das mudanças; correu com ele um sem-fim de especialistas, que lhe faziam toda uma panóplia de exames e análises, e mandaram que engolisse milhares de comprimidos; de manhã, à tarde e à noite; só que os especialistas do Verão nunca concordaram com os médicos do Inverno; e os especialistas da transição só diziam coisas sem nexo, antes de concluírem agora, minha senhora, é preciso esperar para ver.

Até que um dia o rapaz que era dois desapareceu: passando numa rua habitual, sentiu duas mãos agarrá-lo para junto de uma pared
e branca. O mais estranho é que não eram só aquelas duas mãos que o agarravam; era também quem ia atrás daquelas mãos, alguém que afinal tinha muito mais do que duas mãos, tinha duas vontades. E de um momento para o outro, quando estava todo encostado à parede, à sua volta tinha crescido um estranho casulo.

A seu lado lá dentro, estava uma rapariga que era meio flor, meio lobo; queria florir na primavera e queria ser um lobo no inverno; queria ser verde e respirada pelos outros, e queria poder uivar nos promontórios; e não importava que o vento gélido retumbasse as folhas amarelas, nem a tristeza íntima de tudo.
Ele nunca mais voltou a sair daquele casulo, e ela também não; ficaram encostados a uma parede branca, pela qual passam diariamente milhares de pessoas, no meio delas a mãe do rapaz, cada dia mais triste, e todos os especialistas a caminho do hospital, muito preocupados com outros doentes que também era meio qualquer coisa, meio outra.' E.C.

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